O espectro de interesses de Pichon
Rivière é amplo, não só se interessa pela vanguarda do conhecimento
científico e técnico, como também artístico, fundamentalmente plástico
e literário. É um crítico de arte sumamente agudo, admirador do surrealismo,
de Picasso e investigador da obra do Conde de Lautreamont, precursor
do dadaísmo e do movimento surrealista.
Como profissional, é pioneiro absoluto na introdução da psicanálise
no campo "psi" argentino da psiquiatria dinâmica. É fundador
da APA ( associação psicanalítica argentina), possibilita a psicanálise
de crianças, da psicose, a investigação de enfermidades psicossomáticas,
a psicanálise de grupo, a análise institucional, o trabalho comunitário.
Enrique Pichon Rivière foi muito mais do que um profissional especializado.
Sua atividade pioneira e sua produção teórica influenciou o pensamento
científico e cultural da Argentina.
Em 1977 festejamos os "primeiros setenta anos do mestre"
e o público que encheu o teatro era bastante heterogêneo. Foi homenageado
por psiquiatras, psicanalistas, psicodramatistas, psicólogos, comentaristas
esportivos, historiadores, antropólogos, atores, dramaturgos, artistas
plásticos, poetas do tango, músicos, recebeu cartas de felicitações
de todas as partes do mundo. Apesar da heterogeneidade, todos reconheciam
em enrique Pichon Rivière seu mestre (3).
Sabíamos de alguma maneira que esse aniversário era uma despedida
e de fato, poucos dias depois, falecia, em 16 de julho de 1977.
Contexto de descoberta
Sendo psiquiatra e psicanalista no hospício de Las Mercedes de Buenos
Aires, enrique Pichon Rivière descobre que pode encontrar o código,
o sentido dos delírios e sintomas psicóticos de seus pacientes, na
estrutura familiar. Ou seja, que a chave das significações específicas
desse paciente é possuída pela família, essa estrutura que transcende
a individualidade e que tem efeitos constitutivos sobre a mesma. Enrique
Pichon Rivière descobre um novo campo de indagação, conceitualização
e intervenção que transcende o discurso do paciente. Propõe a passagem
da psicanálise à psicologia social. Enrique Pichon Rivière descobre
um novo continente, porém não no sentido de território a ser conquistado,
ou mesmo de um lugar para se viver, mas como um lugar de produção.
Para ele, os conceitos teóricos são conceitos instrumentais para apreender
a realidade e sobre ela intervir. É um conceito similar ao que será
proposto, anos depois, por Michel Foucault, com sua teoria da caixa
de "ferramentas".
Isto o leva a propor que para além do campo específico da psicanálise
está a psicologia social como âmbito de indagação dessas tramas vinculares
que, transcendendo a subjetividade, criam condições para a sua própria
produção.
O ECRO de enrique Pichon Rivière
No curso de duas décadas, ao longo de sua obra, visualiza-se a progressiva
elaboração de sua posição teórica. Em 1960, enrique Pichon Rivière
enuncia explicitamente seu Esquema Conceitual Referencial e Operativo,
publicando muitos artigos em três volumes de sua obra denominada:
"Da psicanálise à psicologia social" e que têm como subtítulos
"A psiquiatria, uma nova problemática", "O processo
grupal" e "O processo criador". Posteriormente publicará
"Psicologia da vida cotidiana". A última produção articulada
de seu ECRO dar-se-á em 1976 , em "Conversações com enrique Pichon
Riviére" de Vicente Zito Lema.
Tomaremos fundamentalmente a última de suas produções. Em seu capítulo
VI, Pichon Rivière diz: "defino o ECRO como um conjunto organizado
de conceitos gerais, teóricos, referidos a um setor do real, a um
determinado universo de discurso, que permite uma aproximação instrumental
ao objeto particular (concreto). O método dialético fundamenta este
ECRO e sua particular dialética".
A respeito da psicologia social sustenta: "A psicologia social
que postulamos tem como objeto o estudo do desenvolvimento e transformação
de uma realidade dialética entre formação ou estrutura social e a
fantasia inconsciente do sujeito, sustentada sobre suas relações de
necessidade".
Ou seja, o objeto de sua psicologia social é o de explicar como a
estrutura social chega a se tornar fantasia inconsciente. Indaga sobre
os processos de constituição da subjetividade a partir da macro-estrutura
social.
O ECRO pichoniano está constituído por três grandes campos disciplinares
que são as ciências sociais, a psicanálise e a psicologia social.
Estas três disciplinas constituem os três sustentáculos principais
de seu marco conceitual.
Isto constitui a condição de interdisciplinariedade de sua psicologia
social. Toma da psicanálise seu conceito de inconsciente, seu conceito
de desejo que re-traduz como necessidade, não no sentido psicanalítico,
mas como a necessidade que se transforma a partir da prática social
que Marx postula na "A ideologia alemã ". A psicanálise
lhe permite pensar a eficácia das identificações vinculares inconscientes
na constituição do esquema referencial subjetivo que opera como esse
"conjunto de experiências, conhecimentos e afetos com os quais
o indivíduo pensa e faz" e que lhe permite operar no mundo (
que não é o mundo, mas esse campo, nos termos de P. Bourdié, ou cultura
particular na qual está socialmente inserido). A psicanálise também
lhe possibilita uma compreensão acabada das vicissitudes subjetivas
nos processos de mudança.
As ciências sociais lhe oferecem como contribuição essa concepção
macro que lhe permite pensar o sujeito situado e sitiado em uma relação
instituído-instituinte na estrutura social e na cultura a que pertence.
Da psicologia social toma, fundamentalmente, as concepções de George
Mead, e, com relação aos aspectos teóricos-técnicos da dinâmica grupal,
as de Kurt Lewin e seus seguidores, como Lippit e Wight.
Como tudo o que coloca Pichon Rivière a partir de sua concepção dialética,
esse ECRO é um sistema aberto não somente ao diálogo com outras produções
teóricas, mas, também, aberto à praxis.
Método dialético
enrique Pichon Rivière adere ao método dialético em sua concepção
do vir-a-ser da natureza, da sociedade e do conhecimento como um processo
contraditório e de mudanças que implicam irreversibilidade através
de saltos qualitativos.
Se tomamos em conta sua concepção de sujeito, Pichon Rivière o concebe
não numa relação harmônica com sua realidade social, mas numa permanente
relação mutuamente transformadora com o mundo. Seu "implacável
interjogo" implica numa inevitável transformação do mundo, fundamentalmente
vincular e social, para o sucesso na realização de seus desejos e
propósitos, realização que, por sua vez, terá efeitos de transformação
do sujeito. Isto comporta pensar a relação sujeito-mundo como uma
relação conflitiva e contraditória.
Daí sua valorização da praxis. A praxis é o que permite a seu ECRO
permanecer como sistema aberto a progressivas ratificações e retificações.
A praxis é o que valida o modelo teórico. Ele sustenta que a praxis
é a que permite ajustar o modelo teórico, o esquema conceitual, à
realidade. Pichon disse que a praxis " introduz a inteligibilidade
dialética nas relações sociais e restabelece a coincidência entre
representação e realidade".
Concepção do sujeito
Este ECRO pichoniano concebe o sujeito como partindo de uma ineludível
condição de sujeito social, num implacável interjogo entre o homem
e o mundo. Pichon Rivière escreve: "O sujeito não é só um sujeito
relacionado, é um sujeito produzido. Não há nada nele que não resulte
da interação entre indivíduos, grupos e classes". Isso significa
que o sujeito nasce com uma carência fundamental que é a ausência
de todo um "pacote" instintivo que o fixe e o ligue com
certeza ao seu habitat. Isto faz com que o campo simbólico seja o
ineludível campo de constituição da subjetividade.
Berger e Lukman são dois sociólogos da corrente do interacionismo
simbólico que afirmam que o homem ocupa uma posição peculiar dentro
do reino animal e dos mamíferos superiores. O homem não possui ambiente
específico para sua espécie, a relação do homem com seu ambiente se
caracteriza pela sua abertura para o mundo. Os instintos do homem,
se comparados com os dos mamíferos superiores, são subdesenvolvidos.
Seus impulsos são inespecíficos e carecem de direção.
A subjetividade se constitui, então, no campo do outro. O outro como
ser social está ineludivelmente no horizonte de toda experiência humana.
Aqui é fundamental o conceito de vínculo, como essa estrutura complexa
e multidimensional que abriga sistemas de pensamentos, afetos e modelos
de ação, maneira de pensar, sentir e fazer com o outro, que constituem
as primeiras sustentações do sujeito e as primeiras estruturas identificatórias
que darão início à realidade psíquica da criança. Não só a trama vincular
a abriga; é condição de sobrevida deste ser que nasce prematuro, incapaz
de sobreviver sem a assistência do outro social: a trama vincular
é a própria base iniludível para a confirmação de nossa identidade.
Sem a presença do outro se desnuda a fragilidade sobre a qual está
constituído o reconhecimento do "si-mesmo" e a identidade
do sujeito. Isto o conhecem bem os que implantam, as celas de castigo
que costumam devastar seus inimigos mediante a privação de estímulos
sensíveis e pela ausência de todo contato humano. Isolados do mundo,
tendemos e desmoronar.
O sujeito da psicologia social de enrique Pichon Rivière é esse sujeito
descentrado, intersubjetivo, que se produz no encontro ou desencontro
com o outro.(4)
Quando enrique Pichon Rivière pensa o sujeito, fá-lo em termos de
"sistema aberto" (a rigor, não há nada que seja pensado
por ele fora dos termos de um sistema aberto: o indivíduo, os grupos,
as instituições, as sociedades, o ECRO). E em relação ao sujeito,
trata-se de um sistema que não é autônomo em si mesmo, trata-se de
um sistema incompleto que "faz sistema com o mundo".
É um sujeito situado e sitiado, que está contextualizado. Não é uma
abstração. É um sujeito histórico. Não se trata de O Homem ou A Sociedade.
É um sujeito situado e sitiado no sentido de que sua subjetividade
é configurada num espaço e num momento histórico social específicos
que lhe outorgam todo um universo de possibilidades mas que significa
para ele, por sua vez, um certo estreitamento das possibilidades de
representação simbólica.
Conceito de vínculo
O ser humano nasce numa trama vincular que no melhor dos casos, fica
aguardando sua chegada com um nome para lhe dar e um acúmulo de expectativas
e de desejos. As tramas vinculares humanas são as que sustentam nosso
prolongado processo de socialização ou de endoculturação.(5)
Ao outro polo do contexto de constituição dessa subjetividade corresponde,
para enrique Pichon Rivière, o mundo moderno. O mundo moderno se caracteriza
por sua condição de mudança, por sua precariedade de sentido segundo
Cornelius Castoriadis, o que faz com que este "magma" de
significações que constitui o mundo social, em determinado momento
histórico, varie.
É nesta sociedade marcada pela mudança que o ser humano deve construir
um marco referencial, um "aparelho para pensar a realidade"
que lhe permita posicionar-se e pertencer a um campo simbólico próprio
de sua cultura e da subcultura na qual está inserido.
Este esquema referencial, este "aparelho para pensar" nos
permite perceber, distinguir, sentir, organizar e operar na realidade.
A partir de um longo processo de identificações com traços das estruturas
vinculares nas quais estamos imersos, construímos este esquema referencial
que estabiliza em nós uma certa maneira de conceber o mundo que, se
não fosse assim, emergiria em sua condição desmesurada, de inabarcabilidade
e de caos.
A característica da modernidade é a mudança e com isso a inevitável
modificação do marco referencial com o qual percebemos nossa realidade.
Isto faz que Pichon Rivière visualize o sujeito em uma permanente
dialética com o mundo, única condição para que este sujeito possa
construir uma leitura adequada de sua realidade. A perda desta inter-relação
dialética faz com que o marco referencial, a maneira de perceber,
discriminar e operar com o mundo se torne anacrônica e, com isso,
se perda a possibilidade de uma inter-relação mutuamente transformadora
com o meio. O fechamento sobre as próprias referências favorece o
deslizamento de velhos fantasmas sobre as relações sociais do presente.
A modernidade como momento histórico social faz com que seja ineludível
para o sujeito, como condição de saúde, o manter um marco referencial
articulado de modo flexível, permeável e com possibilidades de que
o sustentáculo de sua inter-relação dialética homem-mundo.
Nesta sociedade concebida como "magma" de significações
sociais, enrique Pichon Rivière distingue diferentes âmbitos. Denomina-os
de psicossocial (que corresponde ao indivíduo), sócio-dinâmico (grupos),
institucional e comunitário. Estes âmbitos nos permitem visualizar
não somente os cenários nos quais o processo de socialização se institucionaliza
com o objetivo de produzir as subjetividades que irão reproduzi-la,
mas também nos permitem compreender as lógicas distintas, e, portanto,
as diferentes metodologias, técnicas e dispositivos de intervenção
no momento de operar sobre elas.
Os âmbitos são concebidos como interdependentes, como os grandes mediadores
da macro-estrutura social na constituição da subjetividade. O vínculo,
ou as tramas vinculares nas quais o sujeito está imerso, nunca são
elementos isolados: são sempre concebidos como articulação desses
sucessivos âmbitos grupais, institucionais e sociais.
É a partir dessas conceituações que aparece enrique Pichon Rivière
em sua condição de gênio, antecipando, já na década de 60, problemáticas
que só a partir dos anos 80 aparecem como hegemônicas no campo intelectual
das ciências sociais. Nos anos 60 Pichon Rivière afirmava que devemos
pensar a subjetividade na sua condição moderna e a sociedade como
estrutura em permanente mudança, tendente à fragmentação das significações
sociais (6). Por isso colocava que, assim como necessitamos de um
esquema conceitual, um sistema de idéias que guie nossa ação no mundo,
necessitamos que esse sistema de idéias, este aparelho para pensar
também trabalhe como um sistema aberto, que permita sua modificação.
É a interação dialética, mutuamente transformadora com o meio, o que
guiará a ratificação ou retificação do marco referencial subjetivo.
Mas Enrique Pichon Rivière não concebe as modificações do esquema
referencial como uma renúncia, mas, sim, como as modificações necessárias
para uma adaptação ativa à realidade e para que, frente às mudanças
no contexto, os desejos e projetos continuem sendo possíveis.
Todo esquema referencial é inevitavelmente próprio de uma cultura
em um momento histórico-social determinado. Somos sempre emissários
e emergentes da sociedade que nos viu nascer. Todo esquema referencial
é, ao mesmo tempo, produção social e produção individual. Constrói-se
através dos vínculos humanos e consegue, por sua vez, que nos constituamos
como subjetividades que reproduzimos e transformamos a sociedade em
que vivemos.
A idéia de transformação também é um núcleo forte deste pensador.
Não se trata de descrever ou explicar a realidade, mas, sim, de transformá-la.
Transformação que implicará, também, em transformar-se.
Enrique Pichon Rivière nos situa diante do desafio de pensar-nos como
sujeitos marcados pela mudança, insertos numa sociedade que também
se modifica permanentemente e que atualmente foi definida como "contexto
de turbulência" (Mario Robirosa). isso nos obriga a pensar o
sujeito e a sociedade em condições de criação e mutabilidade. Enrique
Pichon Rivière resgata, assim, nossa condição de criadores. Porque
não concebe nenhum sistema como fechado e produzido "para sempre",
porque todos os sistemas - o sujeito, os grupos, as instituições,
os marcos teóricos, seu ECRO - estão abertos à produção das inovações
as quais a sociedade nos vai submeter, inexoravelmente, a partir de
sua condição de modernidade.
Notas:
(1) Agradava a enrique Pichon Rivière relacionar a causa da imigração
de seus pais ao "mistério familiar" de sua própria família,
que foi um segredo para ele até seus 6 ou 7 anos de vida. Tratava-se
do fato de que seus cinco irmãos eram seus meio-irmãos, já que seu
pai havia enviuvado e tinha se casado em segundas núpcias com sua
cunhada, irmã da falecida esposa, sendo ela a mãe de enrique, seu
único filho.
(2) Beatriz Sarlo: "Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 e 1930"
Ed. Nueva Visión.
(3) Angel Fiasché disse "Seus discípulos não foram cortados pela mesma
tesoura". isso é uma prova de seu papel de mestre, de transmissor
de um ECRO específico, mas a partir de uma atitude fortemente motivadora
da criação, e não da repetição.
(4) Frederico Moura foi o lider estético e cantor de Virus, uma das
bandas pop mais importantes da década de oitenta. Morreu de AIDS,
jovem, em dezembro de 1988. Disse: "Creio que as pessoas, às
vezes, se desesperam na busca da identidade, e a identidade não se
busca, transcende-nos. Você flui e, aí, a identidade aparece sozinha.
Quando um se impõe essa coisa de buscar a identidade, se autolimita,
se fecha dentro de si mesmo e surgem os medos, o medo de pensar, o
medo de fantasiar".
(5) Sustém Junger Gergen que devido às mudanças próprias da modernidade,
a socialização nunca acaba.
(6) Enrique Pichon Rivière descreve o mundo moderno através da metáfora
da feira de diversões com muitos quiosques com diversas lógicas de
jogo. Bibliografia: Enrique Pichon Rivière: Obras completas. Nueva Visión Peter
Berger y T. Lukmann: "La construccion social de la realidad"
ed. Tusquets P. Bourdie y L.J.D.Wacquant: "Respuestas"
ed. Grijalbo C. Castoriadis: "Los
dominios del hombre: las encrucijadas del laberinto" Gedisa J.Gergen:
"El Yo saturado" Paidos M. Robirosa: "La Organizacion
Comunitaria" Editado por CENOC. Secretaría de Desarrollo Social
de la Nación.
Notas da Tradução:
* Artigo publicado originalmente na página Web http://www.geocities.com/Athens/Forum/5396/ecro.html
da Escuela de Psicología Social del Sur - Quilmes - Argentina, aqui
publicado com a gentil autorização da autora.
Tradução para o português de Marco A. F. Velloso
** Gladys Adamson é diretora da Escuela de Psicología Social del Sur
e da Escuela Argentina de Psicología Social.